9.4.07


Zeca Afonso
O POETA DA LIBERDADE

A “famosíssima canção” Grândola Vila Morena serviu de senha ao 25 de Abril de ’74 e tornou-se no Hino da Liberdade em Portugal.
Mas mais do que poeta, andarilho e cantor, Zeca Afonso, o seu autor, foi um homem com “H” maiúsculo, auto-didacta nos malabarismos da denúncia e lutador por inúmeras causas sociais. Leccionou em Setúbal, de onde foi expulso, e anos depois
reintegrado como professor de História e de Português na Escola Preparatória de Azeitão.
José Afonso morreu com 58 anos, vítima de esclerose lateral amiotrófica, uma doença letal e invulgar. Na sua despedida estiveram presentes mais de 30 mil pessoas que assim lhe prestaram homenagem e agradecimentos pela lição de Humanidade que a troco de nada se dispôs a ensinar.

Helena Afonso tem bem presentes alguns episódios que evidenciam a teimosia e a determinação do seu pai. Foi o caso de uma luta que, sem apoio, travou contra a existência de uma fábrica de fósforos em Azeitão, terra onde se fixou nos últimos anos de vida e que é ainda o pouso de Zélia, a sua mulher e de inúmeros amigos. Jorge Luz, actual deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal de Sesimbra, ainda recorda o dia em que ambos foram levados para a prisão de Caxias. A grande homenagem a prestar a Zeca, defende, “é continuar a denunciar” questões como algumas existentes no Concelho de Sesimbra, que ignoram a população e a ecologia em prol “da especulação imobiliária”.

Foi numa entrevista conjunta entre estes dois intervenientes no processo da luta pela Liberdade que o Condense encontrou a resposta a diversas questões quanto ao Zeca e à Revolução dos Cravos. Fica ainda um especial agradecimento à Associação José Afonso - AJA, sediada em Setúbal e que apesar de todas as contrariedades, em especial de ordem financeira, tem vindo a resistir e a prestar um óptimo trabalho na divulgação da vida e obra do autor.

“hAJA” Força!

O Condense - O Zeca costuma ser recordado no dia 23 de Fevereiro, este ano com maior destaque por se marcarem 20 anos sobre a sua morte. Acredita que as homenagens têm vindo na altura certa?
Helena Afonso -
Este género de datas, também chamadas de “data padrão” são pretextos utilizados para lembrar figuras de pessoas, isso pratica-se em todo o lado e neste caso não é excepção. O que eu condeno e acho quase escandaloso é que o Zeca, uma figura nacional e mesmo invulgar dentro do seu género seja tão poucas vezes recordado e a sua obra tão pouco passada nos media. É raro ouvirmos uma das suas canções na rádio ou na televisão, para não dizer que não existe um único documentário, que mereça essa designação, sobre a sua vida. Não há uma preocupação nem um interesse em abordar uma figura que dá nome a ruas, a escolas e a parques... Eu olho com algum cepticismo para as comemorações e para a concentração de uma série de referências na televisão e na rádio porque passaram-se 20 anos e neste espaço de tempo contam-se as vezes em que a figura do Zeca foi abordada.

O Condense – Acredita que o trabalho do Zeca tenha tendência a ser ignorado pelas novas gerações?
Helena Afonso -
Vivemos numa época de grande influência dos media, entre eles a própria internet e isso exige um trabalho sistemático, uma preocupação em divulgar a música, a poesia, a personalidade e mesmo os trabalhos de investigação relativos ao Zeca. Hoje ele já é objecto de estudo e se não fosse isso não sei como é que as gerações futuras poderiam vir a falar com conhecimento de causa sobre a pessoa em questão.

O Condense – Os Media deviam ter uma maior responsabilidade na divulgação da música portuguesa?
Helena Afonso –
Com certeza! Eu sou a favor das quotas obrigatórias que se aplicam em muitos países, nomeadamente na França, onde se ouve a música nacional com regularidade, de qualidade ou não... mas foi instituída uma quota que também o deveria ser em Portugal. Caso contrário, ficamos totalmente dominados pela música anglo-saxónica, a música comercial de pior qualidade...

O Condense – Para além de cantor de intervenção, o Zeca também foi um defensor da música popular. Muitos jovens associam o popular ao pimba, o que pode contribuir para tornar este um género em vias de extinção...
Helena Afonso –
É evidente que a música do Zeca está perfeitamente ligada a raízes etnográficas, à qual foram sendo acrescentados elementos de outras influências, como a africana, o jazz, ou a música moderna e contemporânea. Em relação aos mais novos, não tenho contacto suficiente com os jovens portugueses para saber o que ouvem... o que posso dizer é que o conhecimento começa no ambiente familiar e cultural! Hoje assisto a estudantes com batina a ouvirem coisas atrozes e horrorosas que nada têm a ver com o fato coimbrão e com a música popular portuguesa, o que é uma deturpação quase obscena das composições com qualidade!

“Cheguei a assistir, no estrangeiro, a grupos de emigrantes a cantarem o Hino nacional e a Grândola no Dia de Camões!”

O Condense – No concerto do Coliseu, o Zeca apresentou a Grândola Vila Morena dizendo “agora vamos cantar aquela novíssima canção...”. Esta música tornou-se enfadonha?
Helena Afonso
– A Grândola ganhou uma dinâmica própria e emancipou-se como canção. Foi utilizada, cantada e mesmo manipulada em toda a espécie de situações... existe uma identificação natural, pelo menos de uma certa geração, à volta da Grândola e um conceito que a tornou numa espécie de complemento ao Hino nacional pela liberdade, que é o significado do 25 de Abril. Imagino que o Zeca, tendo de a cantar em repetidas situações, se cansou um bocado e tinha alguma ironia ao falar nisso. Ele não era um cantor que gostasse das coisas demasiado fáceis, que se resumissem a um estandarte, ele exprimia-se através da música e procurava textos mais subtis e a Grândola era uma música escarrapachada e que era cantada em todas as manifestações e comícios! Cheguei a assistir, no estrangeiro, a grupos de emigrantes a cantarem o Hino nacional e a Grândola no Dia de Camões!

O Condense - A figura do Zeca foi usurpada por alguns partidos políticos?
Helena Afonso –
Não creio que tivesse sido usurpada, porque o Zeca era assumidamente um homem de esquerda, que disse, fez e praticou o convívio e a colaboração com tudo o que eram forças de esquerda e de resistência ao fascismo. Esses grupos iam desde os cristãos progressistas aos grupos ligados à esquerda... se houve tentativas de o enquadrar numa força partidária não creio que tenham pesado muito porque as pessoas sabem que o Zeca em si era o seu próprio partido.

O Condense – Agora que o “cheiro” da revolução dos cravos anda no ar, digam-me, qual era a necessidade de lutar contra a Polícia Política?
Jorge Luz –
A PIDE prendia indiscriminadamente os opositores à Guerra Colonial, ao Regime Salazarista, às denúncias quanto a situações de miséria... A PIDE era o que era, prendia, espancava, oprimia!

Helena Afonso – Lembro-me claramente do ambiente de tensão que havia na altura, devido a um conjunto de acontecimentos. Em 1969 tinha sido a revolta dos estudantes em Coimbra e que teve uma grande projecção no meio estudantil, que não era um meio de subestimar, pois nele enquadravam-se as elites do país, muitos eram filhos de militares e de políticos e não podemos esquecer que na época só esses é que estudavam... As frentes de batalha da Guerra Colonial tinham-se agravado, as gerações estavam trumatizadas com essas questões, todos os jovens sabiam o que os esperava...

Jorge Luz – Todos os jovens dessa altura têm amigos que foram mortos na Guerra... Essa era a grande luta, ir ao centro do Regime e pôr-lhe um fim!

Helena Afonso – E esse era também o grande tabú do fascismo! Era um assunto intocável e a censura não permitia que se falasse em nada! O tema era cada vez mais premente e dava direito à prisão em Caxias, em Peniche, em deportações, etc, etc... Em 1973 deu-se o Congresso de Aveiro que por se referir à Guerra Colonial mobilizou a sociedade portuguesa, que ia da Igreja ao Partido Socialista, ao Partido Comunista e a toda a oposição...

Jorge Luz – E aliás, acabou com uma intervenção da polícia de choque a espancar toda a gente...

Helena Afonso – Alarmou toda a cidade mas foi o primeiro Congresso da Oposição Democrática que conseguiu trazer à tona a questão da Guerra Colonial, cuja problemática foi debatida durante três dias seguidos. Daí surgiu uma grande movimentação, fizeram-se murais, abaixo-assinados, manifestações, ocupações como a da Capela do Rato... o que não sabíamos nem podíamos imaginar é que os Capitães de Abril, aqueles que eram directamente afectados pela Guerra, já se estavam a organizar!

“O 25 de Abril foi um acto libertário, algo completamente inesperado... finalmente era o fim daquilo! Foi um efeito surpresa fantástico!”

O Condense – Ainda antes do 25 de Abril, o Jorge chegou a ser preso com o Zeca. Como foi esse episódio?
Jorge Luz –
Em vésperas do Dia 1º. de Maio era habitual a polícia prender. Prendia indiscriminadamente dezenas, centenas de pessoas... nesse dia fui preso com umas dezenas de colegas da Faculdade de Ciências, tal como o Zeca! Seguimos para Caxias, como geralmente acontecia nessas situações. Havia um jornal clandestino que se chamava “Missão de Apoio aos Presos Políticos” e continha uma lista incrível e interminável dos detidos. Os estudantes e os operários tinham uma luta comum, que era a luta contra a Guerra e obviamente o Regime anterior ao 25 de Abril não perdoava isso!

Helena Afonso – Temos de dizer uma coisa importante! Pessoas como o Jorge ou o Zeca foram presas até ao fim do dia mas os dirigentes operários foram presos, na mesma altura, durante a noite. A polícia invadia as casas das pessoas para as levar! Não podemos esquecer que este foi um país de classes e ainda o é. Até nisso havia uma distinção entre os estudantes e os trabalhadores!

O Condense – Passamos à pergunta da praxe, onde estava no 25 de Abril de 1974?
Helena Afonso –
Eu estava em Setúbal, no Liceu. A partir da madrugada começaram a haver uma série de telefonemas e as pessoas perceberam que não havia escola, a perguntar “já ouviste umas coisas esquisitas na rádio?” e isso provocou um pavor geral. Há poucos meses tinha havido uma tentativa de golpe levada a cabo pelos Ultras da Direita e isso gerou uma grande dúvida. O receio só se dissipou quando foi ouvida a Grândola Vila Morena...

Jorge Luz – Eu estava há alguns meses exilado em Paris, a tentar organizar a minha vida para continuar a estudar. Soube do 25 de Abril por volta do meio-dia, alguém entrou aos saltos a falar de uma Revolução em Portugal e... no dia seguinte eu estava cá!

Helena Afonso – O que acho incrível é que as gerações mais novas devem ter dificuldades em imaginar aquela sensação, é que para além das pessoas esperançadas e lutadoras havia uma franja da população que estava resignada, parecia que o fascismo era eterno...

Jorge Luz – Mas isso é normal, o fascismo já tinha 50 anos!

Helena Afonso – O 25 de Abril foi um acto libertário, algo completamente inesperado... finalmente era o fim daquilo! Foi um efeito surpresa completamente fantástico!

O Condense - O Zeca ficou emocionado com a escolha da sua voz para ser a senha da Revolução?
Helena Afonso –
Não sei, ele estava escondido em Lisboa... mas a escolha da Grândola foi essencial para percebermos que não estávamos perante um golpe de direita. Num tempo rodeado por escutas e por toda a espécie de vigias a situação foi tão inédita que começámos todos a telefonar e a passar informações e quanto mais se apelava à calma maior era a euforia. O pessoal irrompeu para a rua, aquilo foi um “a ver se te avias” que num instante as pessoas estavam todas juntas a festejar.

“Por um lado, Sesimbra acaba e por outro a Quinta do Conde está a ter um crescimento completamente desregrado...”

O Condense – Passados mais de 30 anos, o que falta para que os sonhos dos “construtores” de Abril se tornem realidade?
Jorge Luz –
Para além de ter sido um grande artista, músico e cantor, o Zeca foi um homem que denunciou todas as prepotências do poder neste país e a maior homenagem que lhe podemos prestar é continuar a denunciar determinadas situações.

Sesimbra, por exemplo, é uma terra que numa geração de políticos autárquicos conseguiu ser completamente destruída! Praticamente era habitada por pescadores, tem cerca de 3 mil pessoas idosas e os jovens são convidados a morar fora da Vila. Quem é que a passou a ocupar? Apartamentos de luxo, barcos na marina durante 15 dias, um mês por ano... há ali a ilusão de que se vive de Turismo mas a verdade é que se está a destruir uma terra milenária no espaço de uma década! Constroem para expulsar as pessoas da terra!

O Condense – E quais as maiores problemáticas a denunciar na Quinta do Conde?
Jorge Luz –
A Quinta do Conde tem uma origem clandestina, não há praticamente Centro de Saúde, a Secundária vai fechar, não há escolas suficientes, coisa que não é novidade para ninguém... mas aprovam-se Planos de Urbanização que prevêm a chegada de mais 15 mil pessoas! Grande parte das ruas não estão alcatroadas e há interesses fortíssimos que se movem e se lhes juntarmos os planos megalómanos da Mata de Sesimbra deparamo-nos com uma situação terrível a nível concelhio! Por um lado, Sesimbra acaba e por outro a Quinta do Conde está a ter um crescimento completamente desregrado...
Tudo isto obedece aos interesses da especulação imobiliária!
E não podemos esquecer um outro problema que temos de denunciar que é o das pedreiras da Serra da Arrábida! Aquilo são buracos autênticos! A determinada altura há uma brecha entre a parede e o mar e que só é visível em determinadas zonas. Esta é de facto uma situação escandalosa que promete continuar!

Helena Afonso – Não existe uma preocupação ecológica... mas há outra situação que considero escandalosa e que se refere às políticas de Emigração deste país, que sempre foram hipócritas. Nunca se fez nada para apoiar os emigrantes, não existem apoios para os que pretendem regressar, nem para as terceiras gerações que nasceram no estrangeiro. Houve sim um consenso silencioso quanto à utilidade de receber os rendimentos que vêm dos emigrantes. Existe uma vaga de emigração enorme – e falei com assistentes sociais de vários países que me confirmaram isso – continua-se a assistir uma vaga de Emigração da qual grande parte continua sem escolarização ou sem preparação. O Estado devia procurar formas de gerir certas zonas rurais do interior e apostar em incentivos que levassem as pessoas a fixar-se nessas áreas. A vaga de emigração é contínua, vai prosseguir, há um envelhecimento da população e são os jovens que continuam a apostar a sair no país.

O Condense – Em tempos de repressão, as denúncias eram subtis e talvez por isso mais interiorizadas. E agora, quais são as melhores formas para denunciar?
Jorge Luz –
Agora podemos denunciar sem medos... penso que nenhum habitante de Sesimbra vê com bons olhos a sua terra a ser completamente destruída e transformada num Algarve! As pessoas não têm dinheiro para comprar os apartamentos e são postas a andar!
Helena Afonso –
No tempo da repressão era evidente quem era o inimigo mas hoje as coisas são mais complicadas! Aparentemente existem melhores condições de vida e de acesso à Cultura e a muitas outras coisas, mas existem novas máfias que concentram em si o acesso ao dinheiro e ao poder.
Eu recordo-me dum episódio em que não haviam eleições livres mas que o Zeca e outros se punham em frente às fábricas porque tinham descoberto uma cláusula que dizia que era permitida a angariação de cidadãos para se inscreverem em listas de votos, ninguém estava interessado em votar por só haver um partido... Eles colocavam-se à porta das fábricas com listas de recenseamento, o que estava dentro da lei, mas falavam com a pessoas sobre os seus próprios interesses.
Para mim esse era um trabalho genial e de cidadania! O Zeca era um homem teimoso e com uma imaginação sem fim. Lembro-me de diversas coisas, como depois do 25 de Abril, em Azeitão, quando surgiu uma fábrica de fósforos mesmo ao lado do pinhal e da zona residencial. Aquilo levantou uma data de questões, quantas árvores iam ser abatidas, se esse abate era controlado e se havia segurança, pois aquela era uma fábrica de explosivos! Ele foi chatear a Câmara Municipal de Setúbal inúmeras vezes, a perguntar “quem é que controla isto”, “onde é que está o Plano”, “qual é a visibilidade sobre este projecto”? Lembro-me dele tomar estas iniciativas pessoais que chateavam meio mundo e sem ter qualquer adesão das pessoas que o rodeavam. No final, chegou-se à conclusão que realmente a fábrica não estava controlada.
O Zeca era uma pessoa que tinha um interesse relacionado com o que se passava à sua volta, com as pessoas envolvidas e fazia suas as questões colectivas. Penso que devíamos colocar esta questão a nós próprios, “de que maneira é que podemos ser intervenientes e fazer as nossas questões sem ser apenas no momento do voto”? No fundo o país somos todos nós e temos de trazer as pessoas cá para fora, para a nossa comunidade, para o nosso bairro, para os nossos sítios! Penso que a imaginação, a iniciativa e mesmo a coragem deviam partir da gente nova porque o futuro é da gente nova!

O Condense – Assistimos há dias à vitória de Salazar que foi consagrado, num concurso da televisão pública, o “Grande Português” de sempre. Isso poderá constituir algum sinal?
Helena Afonso –
Vivemos num país que foi muito marcado pela hipocrisia da Igreja e pelo Estado paternalista, em que o cidadão deveria ser humilde e conformado com a sua pequena existência e dificuldades. Não existia espaço público para discussão nem intercâmbio. Gerações inteiras viveram dentro desse espírito... com a frustração de assistir a um Estado que faz um conjunto de promessas que não é capaz de realizar, com a criação de uma série de centros de poder e de corrupção altíssima é natural que muitos tenham um sentimento saudosista em relação a figuras como o Salazar.

Jorge Luz – Não deixo de estar de acordo com o que a Helena disse, mas a meu ver aquilo foram grupos que agiram militantemente e que votaram compulsivamente no Salazar e no Álvaro de Cunhal. É de desvalorizar, até penso que estava tudo feito para o Salazar ganhar...

O Condense, Edição 25, Abril 2007