19.5.08

António Ratinho
O MAR COMO VIDA, COMO MORTE, SUSTENTO, ALIMENTO, REVOLTA…

“Os quadros e exposições do António Ratinho não se deixam limitar ao óbvio: lama, lacre, areia, anzóis, bóias de vidro, cabaças, escamas de peixe, espinhas, lixo da borda d’água ou mesmo as insólitas embalagens campânulas dos telemóveis, nada do que pode ajudar a exprimir o imaginário do pintor é desperdiçado ou desprezado”. A descrição do professor e economista João Aldeia transmite o sentimento que nos é passado pela obra de Ratinho.

13 anos volvidos sobre o dia em que a tragédia se abateu sobre muitas famílias sesimbrenses e em que um mar furioso resgatou a vida de pescadores locais, o Senhor Jesus das Chagas permanece um ícone, uma figura central e de devoção que há centenas de anos protege as gentes que têm nas águas o seu sustento.
O drama de ’95 deixou marcas profundas em António Ratinho (como em tantos outros), que em pleno tempo de “Chagas” brinda a Vila com uma homenagem a esses homens engolidos pelo mar. “Depois do Antes o Agora” está patente na Fortaleza de Santiago, em Sesimbra e encerra as portas já no dia 4 de Maio.
“Sesimbra, como se sabe, sofre. Chora o que perdeu e receia o que há-de vir”, disse João Aldeia; “O Mar chora quando os Homens lhe tiram os Peixes mas os Peixes também choram porque os Homens lhe estragam o Mar”, disse o pescador Zé d’Alice. Um mundo de lágrimas, plastificadas, salgadas, a não perder!

Sabemos que nasceu em Sesimbra e que por aqui tem passado grande parte da sua vida. Como foi a sua infância nesta Vila?
A minha infância foi numa rua junto à Igreja, a Rua da Esperança, que vai parar junto ao cemitério e acaba no mar. Para mim, esta é uma das ruas mais bonitas de Sesimbra e a minha infância foi ligada a toda esta zona, onde vivi até há cerca de 25 anos atrás.

A Rua da Esperança foi a sua inspiração?
A palavra inspiração é muito complicada, pode-se aplicar ao romantismo, à poesia, à música, está tudo interligado… a inspiração pode vir mas tento não a ligar ao trabalho, que é a busca de uma ideia que nos está no cérebro e que temos de fazer brotar.

Há quanto tempo é que se dedica às artes?
Desde os meus 4, 5 anos que faço desenhos, mas exponho desde 1980, 81. As pessoas que sabiam que eu desenhava perguntavam-me “porque é que não expões?”, “porque é que não mostras?” e o mostrar é diferente… Aconteceu a pedido de muitas famílias!

O que é que mudou após a primeira exposição?
A primeira exposição esteve integrada no Festival do Mar, que decorreu em Sesimbra em 1980. Na altura, eu e um amigo meu (José Arsénio) participámos na mostra “Sesimbra e o Mar”. A partir daí, quase todos os anos faço uma exposição, apesar de ter parado num determinado período da vida em que tive um acidente de percurso. Tento fazer quase tudo em Sesimbra, tive ainda o convite para expor em Lisboa durante a Expo ‘98 - com a exposição que agora está nesta sala - e era para ter continuado com a mostra pelas zonas piscatórias do País, porque esta é uma exposição ligada ao Mar: o mar como vida, o mar como morte, o mar como sustento, como alimento para milhões de pessoas mas que por vezes também se revolta contra nós, que somos uns seres ínfimos em relação a si próprio.

“Nesse dia (em 1995) houve um barco que se afundou e cerca de 25 pescadores morreram, só um é que se salvou…”

“Depois do Antes o Agora” vem prestar homenagem aos pescadores de Sesimbra que morreram no mar em 1995. Fale-nos dessa tragédia…
Nesse dia houve um barco que se afundou e cerca de 25 pescadores morreram, só um é que se salvou… Toda a vida fiz peixes com todo o seu esplendor, com as escamas e tudo, mas a partir desse dia passei a olhar para o mar, para a Pesca, para os pescadores e para os barcos – especialmente para os barcos - de forma diferente. A construção de um barco, o formato e a estrutura são os de um peixe. Penso que se formos aos primórdios do barco, percebemos que ele advém do peixe e também nós temos essa estrutura, uma espinha dorsal, um centro. Tudo tem uma espinha dorsal: uma árvore, uma planta, uma folha, um prédio, tudo tem de ter a espinha de começo para se manter em pé.

A própria estrutura desta sala aproxima-se da de um barco…
Sim, a esta Exposição estou a tentar dar a ideia de um barco. Segundo o ponto de vista de muitas pessoas que passaram por aqui, consegui passar essa mensagem. Eu gosto de jogar com os espaços onde faço as coisas, não basta chegar e emoldurar um quadro, gosto que todo o espaço que nos rodeia seja conivente com o que se está a passar. A maioria das minhas exposições são temáticas, têm um princípio, um meio e um fim. Podem pensar que são coisas feitas à balda, mas tudo tem um sentido, incluindo o próprio título.

O que é que as pessoas podem esperar desta exposição?
A Exposição já percorreu vários locais desde o Estoril, a Cascais, Barcarena, Lisboa, Almada e esteve 2 vezes em Sesimbra. Parou porque tive um problema de saúde, mas a maior parte dos trabalhos estão junto a mim. Uns partiram da minha casa, outros foram comprados e estão agora no Japão, em França, na Inglaterra e por aí a fora…
As pessoas têm-se referido à junção do título e da sala, dizem que está fabulosa, que tem a ver com o espaço da Fortaleza e com a proximidade do mar.
De fundo ouvimos o som do oceano com baleias e golfinhos na sua própria linguagem, que descobrimos há muitos anos. É isso que acompanha esta Exposição, ela não é silenciosa, não consigo fazer exposições silenciosas em que a pessoa entra, como se estivesse num museu ou numa igreja.

Também utiliza um conjunto de antigas embalagens de telemóvel…
A esses objectos, como são transparentes, resolvi chamar-lhes “lágrimas plastificadas”. Em ‘97, ’98, apareceram os telemóveis em Portugal e os mais acessíveis vinham embalados em formato de cápsula, uma embalagem, que mais tarde seria lixo. Tentei juntar muitas, cerca de 80, o que foi complicado. Eu punha-me à porta dos hipermercados e pedia às pessoas que vinham de comprar se precisavam das embalagens, porque não podia andar à procura delas no lixo. Alguns ofereciam-me: “deve ser doidinho”, “mas leve”! Os telemóveis pertenciam à então Telecel, que chegou a ter conhecimento desta Exposição e que ainda me chegou a dar algumas caixas.
Estas cápsulas têm um pouco da transparência da água, têm um pouco de areia da praia com desenhos trabalhados por mim em ’97, ’98, tudo isso para ligar ao tema da Exposição “será que o Mar Chora e os Peixes?”, daí a luz da palavra das “lágrimas plastificadas”. Neste momento agradeço o convite feito pela Comissão de Festas do Senhor Jesus das Chagas, entretanto a Exposição continua a circular…

“Tive o privilégio de ter na minha mão, e nessa Exposição (Vi Vistas de Senhor), a coroa de espinhos que vinha na figura de Jesus quando ele apareceu na praia”

O que é que as Festas em honra de Jesus das Chagas representam para si?
O meu pai andou quase 80 anos no mar e nunca quis que eu fosse para lá. Como disse há pouco, passei a minha infância em Sesimbra e desde miúdo que nós, antes do 25 de Abril, éramos baptizados e tínhamos de receber a educação Católica, eu próprio fui sacristão até que aos 14 anos comecei a questionar a Religião.
O padroeiro dos pescadores de Sesimbra, o Senhor Jesus das Chagas, é uma história que conheço desde criança, de que sempre ouvi falar, penso até que nunca faltei a nenhuma procissão. Tenho 56 anos e creio que no dia 4 de Maio estou sempre em Sesimbra, tal como muitos sesimbrenses que estão fora, não são pescadores mas vêm cá nesse dia. É uma festa que toca muito, a história do porquê da procissão, do aparecimento da figura de Jesus em Sesimbra, remonta a mil quinhentos e picos, e será com certeza uma das mais antigas procissões que se fazem no País e sempre no mesmo dia.
Também já fiz uma exposição dedicada em exclusivo a Jesus das Chagas, em 1990, em que contei com o apoio de pescadores e da Igreja. Tive o privilégio de ter na minha mão, e nessa exposição, a coroa de espinhos que vinha na figura de Jesus quando ele apareceu na praia. Foi incrível, consegui criar um ambiente em que as pessoas entravam na sala, ajoelhava-se e começavam a rezar, como se aquilo fosse um templo. O ambiente entrava na alma de quem conhece, sente a história e tem uma relação próxima com Jesus. Lembro-me de um casal finlandês, nórdico, em que a senhora chorou na sala, ajoelhou-se, e perguntou porque é que eu tinha feito as pessoas sentirem tanto aquela história, aquela festa que se estava a passar…

Sente algum sentimento especial ao prestar homenagem a Sesimbra?
O ego fica satisfeito, eu nunca. Fiz exposições durante muitos anos, com o meu apoio, com meu patrocínio, desde o colar do cartaz ao passar boca a boca… Pela primeira vez tive um cartaz exposto na entrada da Fortaleza e gentilmente feito pela Câmara de Sesimbra.
Na década de ’80 fui entrevistado pela revista do Diário de Notícias e a entrevistadora, que não me conhecia, disse que eu era um amador, sem curso, sem percurso de educação pictórica ou artística, “mas o que está a mostrar é digno de apoio”. Para além do lato sentido da palavra, amador da Arte, aquele que ama, não sou um profissional e espero todos os dias continuar a aprender e a fazer coisas diferentes. Quem lê, quem vem, quem olha, quem escreve e quem fala comigo percebe que os meus trabalhos têm uma linha, uma dedada do Ratinho, uma ligação…
Felizmente tenho mãos, tenho olhos, tenho vontade de continuar. Agradeço terem-se lembrado de falar sobre mim, porque é muito complicado em Sesimbra os meios de Comunicação Social destacarem estas iniciativas. Assim vou vivendo, sobrevivendo – pior a partir de ontem, dia em que a minha vida mudou, mas essa será uma conversa futura…

Nova Morada, edição nº 346, 2 de Maio 2008