30.5.10

EM LUTA PELOS DIREITOS DOS TRABALHADORES ANALFABETOS

Com 89 anos, Joaquim José dos Santos sofreu na pele um analfabetismo imposto que conseguiu contrariar, tempos em que votar não era para todos, em que um peixe era dividido por muitos, as horas de trabalho eram superiores ao tempo de vida do sol e em que era proibido festejar o Dia do Trabalhador.

Jornal do Seixal aproveitou, no 1º de Maio, a visita do alentejano ‘Joaquim Pedro’ ao Seixal e abordou- o numa entrevista intimista, onde muito foi recordado e explicado.
Das reuniões clandestinas, ao período do antes e pós 25 de Abril, ou ao esquema utilizado para ocupar uma das primeiras herdades no Distrito de Évora. Tempos em que
a Reforma Agrária se revelou uma das maiores conquistas alcançadas pelo povo alentejano, mas que em poucos anos viria a cair por terra, transformando-se numa saudosa utopia...

Jornal do Seixal – O que é que o Dia do Trabalhador representa para uma pessoa com a sua idade?
Joaquim José Santos – Representa a Liberdade que dantes não tínhamos. Antes do 25 de Abril, as pessoas que festejavam a data ou eram presas ou despedidas...

JS – Tempos em que o horário de trabalho ascendia as oito horas diárias...
JJS – Sim e consegui-las deu-nos muito trabalho, nenhum patrão as deu de livre vontade!
Éramos trabalhadores rurais e trabalhávamos desde o nascer ao pôr-do-sol. Foi então que nos organizámos e decidimos que certo dia só íamos para o campo quando fossem 8 horas. De início foi complicado, houve muitos despedimentos... mas aos poucos todos aderiram, os patrões tinham de ter o trabalho feito e acabaram por ceder. Foi
assim que em 1963 conquistámos as 8 horas!
Mas mesmo depois disso, os agrários capitalistas começaram a contratar homens e mulheres do Norte, que vinham com outras condições, a ganhar ordenados mais baixos e a entrar hora e meia antes de nascer o sol e a terminar meia hora depois do sol se pôr, porque já não viam... eles tinham de se sujeitar, mas antes de se deitarem
nós abordávamo-los e dizíamos que se recebiam pouco que pedissem mais - mesmo que ficassem a ganhar 100 escudos (0,50€) por dia e nós 70$ ou 80$ - e acima de tudo que não trabalhassem mais do que oito horas diárias.

JS – Apesar de trabalhar na agricultura, nessa época já havia uma réplica do que viria a ser a Segurança Social?
JJS – Na altura havia a Casa do Povo, que era controlada pelo sistema capitalista. Lembro-me que pagava 3$ de quotas por mês mas que não era apoiado de nenhuma forma. Fui sócio da Casa do Povo dos 18 aos 46 anos - a Segurança Social apareceu depois do 25 de Abril - mas isso não me valeu de nada, hoje recebo 46 contos de Reforma (cerca de 245€) por mês mais o bónus por ter mais de 80 anos...

JS – Nessa altura, os direitos das mulheres no trabalho também não eram reconhecidos?
JJS – Antes do 25 de Abril, as mulheres que trabalhavam no campo eram completamente
discriminadas: se os homens ganhavam 20$ elas ganhavam 10$, mesmo que fizessem o mesmo, na ceifa, a desmoitar, fosse o que fosse ganhavam metade, o que era uma miséria!


“Marcámos encontro na Herdade uma hora antes de nascer o sol. Estava lá o feitor e nós dissémos “isto está ocupado pelos trabalhadores”...”


JS - Sabemos que se tornou numa figura bastante conhecida no Alentejo e em especial no Concelho de Vendas Novas. O que é que fez por essas bandas?
JJS – Comecei por formar a Liga dos Pequenos e Médios Agricultores com malta do Distrito de Évora, depois a Reforma Agrária e mais tarde as Cooperativas.

JS – Apesar de fazer parte de uma História recente, muitas pessoas desconhecem o que foi a Reforma Agrária. No que é que consistiu realmente?
JJS – A Reforma Agrária foi aplicada nas propriedades que estavam ao abandono, algumas delas nem gado lá tinham! Os donos das terras não davam trabalho às pessoas e depois do 25 de Abril formámos grupos e ocupámos as terras abandonadas. Aproveitávamos a terra para aquilo que ela dava, onde se podia semear trigo semeava-se trigo, se era para tomate semeávamos tomate, ou arroz, era para aquilo que dava!

JS – É verdade que o movimento foi liderado pelo Partido Comunista?
JJS – Isso é mentira! Quem foi para as terras foram os trabalhadores. O Partido Comunista não tinha nada com isso! Foi um movimento de analfabetos, como eu
e como os outros! Imagine: havia um analfabeto com mulher e um filho ou dois e nenhum tinha trabalho.
Com a Reforma Agrária, todos tinham trabalho. E mais! Até àquela data, os trabalhadores do campo não estavam colectados em sítio nenhum, andavam para
ali à balda! Só depois do 25 de Abril é que entraram no Regime de Trabalho e começaram a surgir as portarias de trabalho...

JS – Era analfabeto mas aprendeu a ler em tenra idade...
JJS – Oh... tinha muita ‘cigueira’com os folhetins do Camponês e do Avante, mas aquilo era proibido... eu já tinha quase 18 anos - tanto que mal sei fazer o
meu nome - mas estudei a Cartilha Maternal e comecei a ler o que queria às escondidas...


“Chegámos a fazer concentrações clandestinas, no campo, com 400 a 500 pessoas”


JS – A Reforma Agrária compensava?
JJS – Se compensava? Em todas as estações dos Caminhos de Ferro havia um celeiro que o Salazar tinha mandado fazer para recolher o trigo e assim que se começou com a Reforma Agrária os celeiros não chegavam! Enchia-se tudo e sobrava metade! O pessoal
andava todo empregado!
Onde eu estive havia 12 propriedades, os donos tinham 1.300 ovelhas e 160 cabeças de gado vacum ao todo. Ao fim de pouco tempo, a Cooperativa tinha 5.000 ovelhas, 3 manadas de porcas criadoras com 30 porcas cada uma, uma manada com 180 vacas a criar, em vacas taurinas a dar leite tínhamos 45, 80 bezerros a engordar e
ainda tínhamos uns 1.300, 1.400 porcos! Foi isso que devolvemos aos agrários quando acabaram com a Reforma Agrária!

JS – Fale-nos da primeira propriedade que ocupou!
JJS – A primeira Herdade que se ocupou foi a do Monte Branco, em Vendas Novas. Fizémos três reuniões numa Sociedade: na primeira criámos uma Direcção, na segunda já foi mais gente e decidimos como é que íamos fazer a ocupação e na terceira combinámos a hora e o dia para ocupar as terras. Éramos cerca de 60 ou 70 pessoas e marcámos encontro na Herdade do Monte Branco uma hora antes de nascer o sol. Estava
lá o feitor e nós dissémos “isto está ocupado pelos trabalhadores”.
Ele disse que ia chamar o patrão mas o telefone já não funcionava porque já lá tínhamos posto uma coisa pesada nos fios (risos) para ele não trabalhar.
Metemos as mãos à obra e chegámos a um ponto em que já éramos 360!

JS – Como é que o proprietário reagiu?
JJS – Ali ninguém implicou...

JS – Fale-nos de outros passos que tenha dado na clandestinidade...
JJS – Antes do 25 de Abril fazíamos muitas concentrações... chegámos a fazer concentrações clandestinas, no campo, com 400 a 500 pessoas, durante a noite... tínhamos uma hora marcada, cada um tinha o seu controleiro que só controlava 4 ou 5 pessoas. Nós já sabíamos onde ele estava escondido e antes de lá chegar fingíamos que tínhamos tosse ou dávamos um pontapé numa pedra, ele aparecia e levava-nos
para junto do restante grupo. Isto eram grupos que se iam juntando nos vários concelhos do Distrito de Évora para decidir o futuro dos trabalhadores rurais.


“Houve muitas coisas mal feitas (na Reforma Agrária), mas se tivéssemos um Governo a favor dos trabalhadores, tinha-se decidido ver o que é que estava mal para se poder
corrigir”


JS – Nas suas lides de então vinha muitas vezes trabalhar para a Margem Sul e para o Seixal...
JJS – Sim, na Cooperativa tínhamos muito pinhal e vínhamos muitas vezes à Amora trazer bidões de resina. Para além disso, também trazíamos muito gado para o matadouro do Seixal... Havia um grande intercâmbio entre as Cooperativas e muito
trabalho e rendimento. Nessa altura, só não trabalhava quem não queria.

JS – Se por um lado tiraram milhares de bocas da fome, os reformistas também são acusados de ter roubado propriedades aos seus donos efectivos, que eram os
agrários. Como é que encara esta questão?
JJS – Ninguém roubou nada! A terra é do Estado, não tem dono! Tanto que não tem que temos de pagar contribuições dela por tudo e por nada! Os agrários nunca viveram melhores tempos do que esses em que as terras estiveram cupadas, porque recebiam
indemnizações e muitos deles ainda hoje as recebem. Se me vierem dizer que tudo foi muito bem feito na Reforma Agrária, eu digo que é mentira! Houve muitas coisas mal feitas, mas se tivéssemos um Governo a favor dos trabalhadores, tinha-se decidido
ver o que é que estava mal para se poder corrigir. Mas não! Tivémos quem destruísse tudo e os grandes criminosos foram o Doutor Mário Soares e o Barreto... eles agora é que deviam ir para o Alentejo comer o que lá há, porque só lá há silvas e mato!
Tiraram tudo aos trabalhadores e agora quem tem olhos que vá lá ver os quilos e quilos de azeitonas que ali ficaram sem ser apanhados!
No Concelho de Montemor havia 15 lagares a funcionar os 12 meses do ano, agora só um é que trabalha e não mais do que 30 dias...

JS – O senhor Joaquim mora actualmente em Santiago do Escoural, terra do Casquinha e do Caravela, dois homens mortos por defender a Reforma Agrária...
JJS – O Casquinha, que tinha 18 anos e o Caravela que já era um homem, morreram na Freguesia de São Cristovão, em Vale Nobre. Eles queriam evitar que lhes tirassem umas vacas alentejanas que eram da Cooperativa.
A malta juntou-se para os apoiar e consta-se que os dois foram mortos por filhos de agrários vestidos de polícias... Nesse funeral estiveram milhares de pessoas vindas de todo o País, eu sei lá... o cortejo fúnebre tinha pelo menos 10 quilómetros de fila, aquilo foi uma das maiores manifestações políticas que houve em homenagem
aos homens assassinados e à Reforma Agrária!


“Não tenho pena nenhuma daquilo que fiz. Só tenho pena do tanto que sofremos de noite e dia e ver que isto está a voltar ao que era...”


JS – Acredita que a desertificação no Alentejo foi uma consequência do fim da Reforma Agrária?
JJS – É um dos motivos, porque nessa altura dávamos emprego a muita gente nova, agricultores, veterinários, tractoristas... a maioria teve de emigrar, o Alentejo
está deserto, as árvores estão a secar porque não são tratadas... muito gado existe por causa dos subsídios que o estado atribui, mas o que é bom vai para fora e o
que é ruim vem para ser consumido em Portugal... E apesar de ter acabado, se não fosse a Reforma Agrária havia ainda mais miséria e fome, porque a maior parte dos
alentejanos nesta altura nem direito a Reforma ia ter...

JS – Há quase 90 anos que por aqui anda... como é que analisa as conquistas e as derrotas do povo português durante o seu percurso de vida?
JJS – Tal como as pessoas que trabalharam comigo, não tenho pena nenhuma daquilo que fiz. Só tenho pena do tanto que sofremos de noite e dia e ver que isto está a voltar ao que era... já há coisas piores do que existiam antes do 25 de Abril, os filhos
matam pais, os pais matam filhos e mães... e só já há uma coisa a dizer: não prendam os ladrões todos, senão ficamos sem Governo!

JS – Uma mensagem para os trabalhadores!
JJS – Dizem que há crise… os trabalhadores estão no desemprego e aquilo que há para aproveitar não se aproveita! Que crise é essa? Temos os recursos mas não os aproveitamos! Isto é uma crise de política!

Jornal do Seixal, Maio 2010