Foi numa tarde solarenga que o Nova Morada partiu rumo às Aguncheiras, na Azoia, para ali se encontrar com São José Lapa, Inês Lapa Lopes e a restante equipa, que efusiva, ensaiava a “Gaivota”.
Com estreia marcada para o dia 07 de Julho e com São José Lapa no papel de Arkadina, a encenação d’ “A Gaivota, num voo rasante sobre as Aguncheiras”, de Anton Tchekov, estará em cena todos os fins de semana do mês de Julho.
Acompanhámos o momento da grande fotografia que irá acompanhar o cartaz da peça e compreendemos que as diversas “sensibilidades políticas” têm vindo a desprezar a Cultura, que apesar de ignorada “é um chamariz que gera receitas a toda a volta, assim como o Turismo”.
Para além de calorosa, a tarde foi acima de tudo muito esclarecedora quanto à luta que os artistas têm de travar para que a sua arte, assistida por cerca de 2 mil pessoas num espectáculo inicial, seja reconhecida pelo executivo Municipal, que nem se apercebeu da magia que passou pela Azoia nas várias noites encantadas que ali aconteceram no Verão passado...
“A grande amiga deste espaço é a Vanda, que tem uns pais que adoro e que me fizeram descobrir este espaço e que fiquei para o final da vida a amar... Cheguei de carro, a chover e disse ‘eu não tenho dinheiro, mas isto há-de ser meu e assim foi’”, confessou São José Lapa.
O Espaço das Aguncheiras foi a concretização de um sonho há muito desejado. O “sítio magnífico”, como o definiu Inês Lapa Lopes, filha de São José, e assim que descoberto, foi adquirido “no intuito de o transformar num centro de desenvolvimento artístico em várias artes, fossem plásticas, teatro, dança ou música pois todas elas carecem de infra-estruturas muito caras”. Uma ideia original e essencial para o Concelho mas que nem por isso suscitou a curiosidade e o apoio desejados no momento da sua aquisição, “batemos a várias portas mas com dificuldade, pois não somos apoiados pelo Ministério da Cultura nem por outras Instituições”, lamentou Inês. São José Lapa referiu-se mesmo aos “governos de sensibilidade PS como PSD” e respectivo Ministério da Cultura, que nunca terão prestado quaisquer apoios para que o projecto avançasse. Mas a ideia chegou e venceu e resta-nos agora esperar pela peça de Tchecov que ali será exibida, em pleno Verão!
A ideia de fomentar a Cultura na Azoia surgiu há cerca de 10 anos. “Começámos há cerca de um ano, com um curso de agricultura biodinâmica e aqui passámos quatro fins-de-semana a aprender agricultura biológica que se pode aplicar em qualquer varanda”, explicou Inês Lapa Lopes ao Nova Morada. Uma iniciativa que não estava ligada às profissões dos mentores da ideia “e a minha mãe, que é encenadora e actriz”, decidiu então avançar com um espectáculo de Teatro nas Aguncheiras. Foi assim que surgiu a ideia de ali concretizar a peça “Sonho de Uma Noite de Verão”.
Conforme São José Lapa, o espectáculo aconteceu porque os cerca de 2,75 hectares de terreno, “com um bosque à portuguesa, que tem pouca variedade de árvores e pequenos erros que se reflectem em muitos incêndios”, foi o ideal para que “a maravilha do Sonho de Verão” se pudesse concretizar. “Há cerca de 4 anos que nos tínhamos candidatado a um apoio do Ministério da Cultura para fazer a peça”, declarou a actriz, mas o projecto nunca foi apoiado.
A peça foi levada a público no passado ano e “para quem conhece a história do Sonho, este realiza-se num bosque e é rodeado de todo um ambiente mágico que existe aqui à volta onde as fadas, os gnomos e essas personagens mágicas” apareceram para delícia dos espectadores.
O espectáculo começou ao pôr do sol e prosseguiu durante a noite, “criando uma atmosfera verdadeiramente mágica” nas Aguncheiras.
“Sem quaisquer apoios e apenas com alguma ajuda da Câmara Municipal, que entrou com o apoio logístico e fez os cartazes que agradecemos imenso e que esperamos ter para a Gaivota”, exclamou Inês Lapa Lopes, a grande ajuda correspondeu ao “apoio dos actores e dos técnicos de “backstage” que tivémos”. Um espectáculo que foi para a frente contando com a presença de cerca de 60 pessoas e que “foi todo feito por nós sem apoio, sem dinheiro, sem nada...”.
Vingaram o entusiasmo e a força do produto que se repercutiram numa campanha levada a cabo pela televisão, revistas, jornais e blog. “No final ficámos felicíssimos porque fizémos 6 espectáculos e no último tivémos mais de 500 pessoas”, sendo que no total foram quase 2 mil os espectadores que marcaram a presença na Azoia.
Existe a ideia que “a Cultura não gera garantias, mas ela é um chamariz que gera lucro a toda a volta, assim como o Turismo”, afirmou Inês Lapa Lopes.
E porque a Cultura “é das coisas que geram mais receitas, não só os teatros, mas também os museus, as pinturas ou os dealers da pintura”, entre variadíssimas coisas, as ideologistas da iniciativa ficaram surpreendidas com o apoio da Câmara Municipal e com “o próprio presidente da Câmara”, que “não teve noção da afluência de público e não veio sequer ao espectáculo”, lamentou Inês Lopes, que se referiu à mãe do Ricardo, um dos actores e que veste o papel, na vida real, da vereadora Guilhermina Ruivo, que se sensibilizou e a título pessoal incentivou a peça.
Conforme acordo discutido com o Município, que “percebeu que havia uma dinâmica em volta deste espaço e que o mesmo poderia ser um pólo de atracção”, surgiu já a ideia de avançar com um projecto no cine-teatro João Mota, “onde contamos actuar”. Apesar de esse ser um espaço fechado, “pode-se complementar” com o bosque da Azoia.
Para além da falta de incentivos à Cultura, o grupo das Aguncheiras lamentou trabalhar sobretudo ao fim-de-semana, “estamos a preparar a Gaivota desde Outubro e porque não é apoiado e as pessoas têm de viver de outras profissões”, é ao longo da semana que cada um dos intervenientes pensa sobre a peça para a preparar nos tempos (não) mortos, aos sábados e domingos.
“A Gaivota num vôo razante sobre as Aguncheiras”
“A Gaivota, num vôo Razante sobre as Aguncheiras” é a nova peça que tem vindo a ser preparada desde o passado Outono e que consiste numa adaptação muito fiel ao texto original de Tchecov. A ironia da Gaivota é que o seu autor a concebeu como uma comédia, mas ela foi interpretada e é tida por alguns como um drama, ou tragédia.
Diz a encenadora, na sua apresentação, que “este nosso espectáculo desenrola-se numa época indeterminada onde dez personagens, procurando a felicidade, lutam contra o tédio e a solidão, enquanto, amam, odeiam,filosofam, comem, bebem, fumam, pescam... O professor Medvedenko ama Macha, que ama Treplev, que ama Nina, que ama Trigorin, que também é amado por Arkadina. Polina casada com Shamraev, ama Dorn, o médico reformado. E Sorin nunca foi amado...”
“Esperemos que a CMS apoie este espectáculo”, confiou Inês Lapa Lopes que avançou que a vereadora da Cultura, Felícia Costa, terá sugerido a apresentação de uma proposta, “esperamos assinar um protocolo no final deste ano, porque para já têm dificuldades em avançar a verba”.
Para os mais novos está já a ser dinamizada a peça “A Dona Redonda”, que consiste num livro infantil da Virgínia de Castro e Almeida. Constituído por diversos contos, “um deles está a ser completamente adaptado com diversas aventuras”, avançou Inês que promete que esta peça vai corresponder apenas a algumas aventuras a terem continuidade nos anos seguintes. A cena deverá ser apresentado ao público em Setembro e provavelmente será levada ao cine-teatro João Mota. “Propusémos apresentar palestras e esmiuçar os temas”, até porque “A Gaivota presta-se a inúmeras vertentes socias, culturais e humanas, acerca de um escritor paraplégico que é o Trigoret, um tema “interessante e oportuno, que teve um grande trabalho de dramaturgia que está a ser alvo de grande empenho”.
A ideia é apresentar pequenas cenas da Gaivota e ter um ou dois convidados que falarão sobre a principal questão abordada.
“Não é promiscuo, é a realidade!”
E porque a história de Tchaikovsky pode abanar as mentes mais púdicas, São José Lapa questionou, “mas em século vive você?”...
A história remonta a uma escrita concebida no século XIX e os seus intérpretes não hesitaram em definir a sua própria personagem, sem tabús, da forma ideal como a arte deve ser realmente expressada...
Nesta pequena grande mostra participam João Moreira Santos, no papel de Sorin; Francisco Rasteiro, como Yakov; Isabel Martins, a primeira Polina e irmã do médico ginecologista; Rui Pedro, Medvedenko; Vanda Canana que é a Macha e apaixonada pelo Dorn; Ricardo Matias, Treplev, filho da Arcanina e eterno enamorado por Nina; João Paiva, o escritor Trigorin e amante da grande actriz Arkadina mas que vai ter um caso com Nina, a Gaivota...
Artur Guerra, feitor da quinta; Luís Cavaleiro, Dorn, é o médico obstetra e amante da Polina;
Jaqueline Amaro é Nina, a Gaivota, em conjunto com a Inês Lapa Lopes, sendo que o elenco varia ao longo as semanas.
“A Nina é uma rapariga do campo mas que está fascinada porque é vizinha da quinta onde uma actriz famosíssima por vezes vem passar as suas férias e tem um filho que quer ser escritor e por quem ela se apaixona e juntos constroem um espectáculo para mostrar à mãe que chega depois com outro escritor”, foi avançando a actriz que acabou por resumir o encanto da peça com um “e depois venham ver”...
Francisco Martins é Treplev, juntamente com Ricardo Matias.
São José Lapa é a Arkadina, “a directora”, que “apesar da (falsa) união de facto com o João Baião que ainda no outro dia veio na TV Guia ”, sente um prazer por funcionar aqui ao ar livre.
“Passei 20 anos na residência do Teatro Nacional, um buraco escuro e que segundo reza a história foi um tribunal de inquisição e tem um onda terrível”, confessou.
Na opinião da actriz, uma companhia de teatro real não existe. “O teatro evoluiu de tal maneira e tem tantas ramificações que de facto o bom é ensaiar ao ar livre”. E porque “não sei quantos anos vamos continuar a contar com esta natureza amiga - porque segundo as teorias isto está cada vez pior - o melhor é aproveitar!”
“Isto é Fundamental!”
Artur Guerra, “o feitor”, reconheceu mesmo que o seu “sonho de Verão e de Inverno é, desde o o início, trazer a escola aqui”, mas a verdade é que o também professor se tem confrontado com sérias barreiras... Ainda assim, insiste, “isto é fundamental, o encontro nacional de escolas foi um êxito enorme e nunca mais se ouviu falar de nada... a música e o teatro deviam ser duas disciplinas obrigatórias”, mas não são! “Enquanto isto não for sentido no país e na zona vai ser um défice muito grande na Península”...
Um sentimento fácil de assimiliar, desde o momento em que a Cultura é passada para um plano secundário.
Apesar das dificuldades, o Espaço das Aguncheiras está a desenvolver um projecto de formação com as quatro escolas do Concelho de Sesimbra que se mostram interessadas e que estão relacionadas com a “Mosta de Teatro Escolar”, a Escola Básica e Integrada da Quinta do Conde, a Escola Michel Giacometti, o Colégio Educa a Brincar na Cotovia e o Atelier de Tempos Livres, que é uma estrutura Municipal também na Quinta do Conde. São 4 escolas que estão a participar num projecto apadrinhado pela CMS. A ideia é orientar professores que fazem os ensaios com os alunos para também desenvolverem esta Mostra.
“Neste momento têm contado com o Rui Pedro, que é actor e com a São José Lapa que também tem comparecido em várias sessões”, mas o objectivo é orientar os próprios professores, visto que “é quase impossível sermos nós a trabalhar com os alunos”. A tentativa deste grupo é a de trabalhar com as escolas do Concelho e tentar angariar simpatizantes, amigos e interessados em tornar o Teatro uma arte.
Até porque a Cultura não pode apenas ser representada pelos actores e há muito trabalho de “backstage”, sem tanto destaque “mas com muita, muita importância por trás do palco!” concluiu Inês Lapa Lopes.
Nova Morada, edição nº 326, 1 Junho 2007