Foi num ambiente de alegria, mas também de combatividade, que no passado dia 15, milhares de pessoas percorreram as ruas da baixa de Lisboa, numa marcha onde os apelos à paz ecoaram entre cânticos e palavras de ordem que condenaram as intenções belicistas da administração norte-americana. A jornada foi inspirada pelo Fórum Social Europeu, e só na capital contou com a adesão de 150 organizações cívicas, partidos políticos e movimentos religiosos. Por todo o mundo, aliás, em mais de seiscentas cidades, iguais protestos, alguns deles gigantescos, deixaram o mesmo recado: Paz, sim! Guerra, Não!
A concentração estava marcada para o Largo Luís de Camões, às 15 e 30, e os milhares de pessoas que, por essa hora, encheram o local e as ruas e praças mais próximas, logo prometeram ultrapassar as expectativas da organização, mas surpreendendo os mais desprevenidos, que àquela hora, saíam da estação do metro do Chiado e se deparavam com uma multidão que tornava quase impossível dar um passo em frente. Afinal, mais de 80 mil manifestantes haveriam de fazer o percurso entre o local da concentração e o Rossio, passando pelo Cais do Sodré, Rua do Arsenal, Praça do Comércio e Rua da Prata.
E foi ao som de José Afonso - “Não me obriguem a vir para a rua e gritar...” que a manifestação teve início. A presença de partidos políticos era visível nas largas centenas de bandeiras do Partido Comunista Português, pelo Tio Durão, do Barroso do Bloco de Esquerda (uma réplica do Tio Sam, ícone dos EUA), e algumas bandeiras do Partido Humanista, mas onde se notou a ausência da razão e do coração do Partido Socialista, apesar da presença evidente da J.S.
“The game is not over”
Depois de Barata Moura, reitor da Universidade de Lisboa, ter referido que se trata de uma guerra pelo “controil do petroil», falou, em nome das Organizações e Movimentos Religiosos, a ex primeira-ministra, Maria de Lurdes Pintasilgo, que chamou ao Governo português “vassalo de Bush”.
Seguiu-se Carvalho da Silva, secretário geral da CGTP-IN, que salientou a diversidade dos grupos e personalidades presentes, que se uniram nesta jornada a favor da Paz. O sindicalista associou a política agressiva dos EUA aos interesses que agridem as classes trabalhadores, dizendo que uma guerra seria um bom pretexto para ainda mais sacrifícios exigidos aos povos e, naturalmente, aos trabalhadores portugueses. Para Carvalho da Silva, a paz é imprescindível ao desenvolvimento e à justiça social.
Mário Soares subiu ao palco na qualidade de cidadão e de primeiro subscritor de um manifesto contra a guerra que, até agora, já contou com a adesão de mais de sete mil assinaturas. Falou da democracia e da voz que o povo deve ter na resolução deste problema, tendo ouvido: “O povo, unido, jamais será vencido!”.
Soares chamou a atenção para as causas políticas que se evidenciam no contexto desta guerra “na reunião, que ontem (dia 14) assistimos pela televisão e pela rádio, nas Nações Unidas, soubemos que não há provas, por mais que eles queiram, não há perigo eminente de agressão. (...) Esta guerra que se quer fazer e que se anuncia há mais de 2 meses, tem um cheiro iniludível a petróleo. Se acontecer, vai fazer subir o preço do petróleo, e quem vai pagar isso são as economias mais frágeis, as economias mais pobres... Somos nós todos!”.
Esta foi uma jornada contra a guerra, contra a ameça ao povo iraquiano, contra o holocausto, mas, como Mário Soares deixou claro, não a favor de Saddam Hussein. Citando Carvalho da Silva: “Nunca fomos pró Saddam, mas somos pelo povo iraquiano!”
"Do Bush cabron, à vigarice da Florida..."
Na marcha para o Rossio, tivemos oportunidade de falar com alguns manifestantes e de recolher alguns depoimentos. Marcos, um galego que estuda em Portugal, que gritava: Querem petróleo, vão à Galiza!, considerou a manif um pouco aborrecida: “Esta gente não canta, não brinca, nós fazemos mais barulho, mais confusão...». E noutro tom: «Os Chefes de Estado são todos iguais... e o Bush é un cabron!”
"Sou um cidadão ofendido..."
Para Zé Chitas, professor aposentado – foi assim que se apresentou - havia uma boa razão para estar ali: «Estou aqui pela humanidade. Sou um cidadão ofendido com a prepotência dos Estados Unidos, que já nem respeitam as decisões da ONU. Independentemente do que os inspectores estão a fazer, continuam com a ideia da guerra. Eles não querem o Saddam, querem o domínio sobre todo o Médio Oriente».
O Zé Chitas tinha vindo a reclamar por causa das bandeiras. Porquê? «Eu vi uma bandeira dum partido, que julguei ser o PSD, mas agora vejo que é um microcosmo que não existe (Partido Humanista). E vi outra coisa: vi ontem o secretário geral do PS a demarcar-se desta posição. Isso é que é indigno! O secretário geral de um partido socialista estar ao lado do imperialismo, porque esta guerra é o imperialismo a querer tomar todo o poder. A NATO está desintegrada, a ONU vai morrer, aliás, já não existia, precisamente pelas posições imperialistas dos Estados Unidos».
Mas Zé Chitas espera que estes movimentos resultem? «Sim. Quando os governos - e o nosso governo, comecemos aqui por casa - tiverem um bocadinho de vergonha e tiverem a visão destas manifestações». Quisemos que o Zé Chitas se explicasse melhor: «O que está aqui é o que pensa o povo português, para além das sondagens que já foram feitas, que dão quase 2/3 da população contra a guerra - contra a guerra do Iraque. E não tem nada a ver com as ditaduras. Agora é que vêm moralistas dos EUA dizer: vamos destruir a ditadura do Saddam... Então, e as outras ditaduras? E a ditadura do Bush, que se está a querer impor ao mundo depois da queda do muro de Berlim, depois da dissolução do bloco de leste?. Agora é que vêm armados em moralistas? Eles não têm moral, porque até este Bush - e isto é dito pela comunicação social, não é por mim - ganhou na Florida com chapéus de votos. Ele não está eleito pelo povo americano, aquilo foi uma vigarice na Florida».
E o Zé Chitas lá foi, mais a sua indignação e as suas razões que, afinal, pareciam ser as razões de toda a gente.
Darli Lique Rosa é trabalhador numa obra na rua do Alecrim, cujos andaimes foram invadidos por alguns manifestantes. Apresentou-se como brasileiro, lutador, sofredor também. Apanhado desprevenido pela manif? «É! Mas estou a favor desta manifestação para não haver guerra. Sou do Brasil e sou contra a guerra. Fiquei sabendo do que estava acontecendo quando passaram as pessoas, tem mais de mil pessoas que passaram nesta praça hoje...». E quando manif anda, trabalho pára. «Sim, eu estava trabalhando, mas parei porque invadiu de pessoas e não tem mais como trabalhar». E se pudesse dizer alguma coisa ao Saddam e ao Bush, o que seria? «P’ra deixar o povo em paz e o país a mesma coisa, porque ele provoca muito... Eu acho que o Bush quer é ganhar o mundo todo. É perigoso mexer com essas coisas. Eu sou a favor da paz».
Outra Banda, edição de Fevereiro 2003