Sedeada em Azeitão, a Associação Meninos de Oiro foi a concretização do sonho que Maria do Céu Guitart, presidente da instituição, tinha desde a adolescência. Ouvida a história da casa e acima de tudo das crianças que defende, esta reportagem é fruto de uma entrevista intimista e tocante... que os casos de maus tratos às crianças são chocantes já todos sabíamos, a novidade é que acontecem mais perto de nós do que poderíamos imaginar...
“Desde os 15 anos que sonhava fazer algo, li muito e estudei muito sobre o assunto, tive o meu filho que me deu outra consciência da realidade e cheguei à conclusão de que tinha chegado o momento quando fui a um congresso onde se fazia um repto à sociedade civil para se organizar e fazer algo pela defesa das crianças, porque não é só ao Estado que compete defender os direitos da criança”.
Foi assim que, em 2002, a ideia tomou forma e em Maio do ano seguinte, Maria Guitart constituiu os Meninos de Oiro como Pessoa Colectiva de Utilidade Pública.
E porquê “Meninos de Oiro”? Porque foi em Azeitão que José Afonso viveu os últimos anos da sua vida “e tem aquela música tão bonita: O meu menino é d'oiro, É d'oiro, é de oiro fino...”, explicou Maria do Céu Guitart, acrescentando que “chamava o meu filho de Menino de Oiro e penso que todas as crianças têm o direito de ser chamadas assim, porque todos os Meninos são de Oiro”.
Autodidacta, Maria do Céu é proprietária de uma imensa biblioteca relacionada com a criança, mas nunca optou por nenhuma especialização. Fotógrafa de profissão, foi um dos seus retratos o escolhido para ser a imagem dos Meninos de Oiro.
Maria do Céu nasceu em 1959, no ano em que foi feita a primeira Declaração dos Direitos da Criança. Desde então, reconhece, passou a haver “uma consciência relativa aos direitos da criança”, mas no seu entender ainda “há um longo caminho a percorrer, em especial na área da prevenção”.
Na aposta pela prevenção, os Meninos de Oiro têm um Centro de Apoio Familiar e Acompanhamento Parental (CAPAF), que é constituído por diversos técnicos que acompanham 100 crianças e jovens nas suas próprias residências.
“As pessoas podem-se questionar sobre o que é que andamos a fazer, mas actuamos na área da prevenção, com o objectivo das crianças não serem tiradas aos familiares”. Neste Universo existem não só crianças em risco, mas mesmo em “perigo”, referiu a presidente, explicando que “certas famílias só têm as crianças porque as acompanhamos muito de perto e quando digo muito de perto significa que lá temos de ir todos os dias, porque aquela criança está em perigo e queremos evitar uma situação limite em que a criança já sofre e tenha de ser confrontada com um sofrimento ainda maior, que é ser retirada à família”.
“No ano anterior à Associação nascer, tinham sido retirados uns irmãos que estavam amarrados à cama enquanto os pais iam trabalhar e tinham aos pés tigelas com comida e com água”
Entre as ofensas contra os direitos das crianças, Maria do Céu destaca a negligência, os maus tratos que existem no seio da própria família, “gritos, ameaças, ou sujeição a humilhações, tudo isso são maus tratos psicológicos”.
Para além destes casos, a instituição também acompanha crianças que antes de ser acompanhadas não tinham convivência com outras crianças, “há algumas que têm três ou quatro anos e nem sabem falar, até à data só conviveram com animais e só sabem repetir os seus sons, ladrar e miar! Neste caso, a criança até fazia aquele gesto dos gatos (tentando exemplificar o gesto de um gato a mexer no nariz com a patinha). Ele não sabia falar, mas desde que é acompanhado por nós, já fala e perdeu o seu ar triste, já sorri com facilidade”...
No ano anterior à Associação nascer, tinham sido retirados uns irmãos que estavam amarrados à cama enquanto os pais iam trabalhar e tinham aos pés tigelas com comida e com água”...
Neste caso, as crianças foram salvas dos seus malfeitores e esse é outro dos grandes perigos, é que “a maior parte dos maus tratos são feitos pelos próprios pais, porque são os que lhes estão mais próximos e os sujeitam a tais situações”.
Se os maus tratos são exclusivos às famílias com dificuldades económicas? “Não! O que costumamos dizer é que nas famílias pobres as paredes não são tão grossas e os problemas passam cá para fora mais depressa. Muitas dessas crianças têm problemas de necessidade de apoio alimentar, em roupa e mobiliário e ao terem de procurar auxílio tornam-se mais visíveis”. A Associação já recebeu denúncias de casos em famílias abastadas, mas que não se expõem, pelo que se torna mais complicado intervir.
Os Meninos apoiados pela Associação pertecem a Azeitão, mas saliente-se que a área de acção é bastante vasta, “vai até ao Convento da Arrábida, mas já chegaram a ser desta rua”!
Muitos dos casos podem acontecer na porta que está ao nosso lado e “tentamos não nos tornar incómodos, porque não nos queremos expôr, mas sabemos que há gritos, que há crianças que choram, que há situações dolorosas e nós muitas vezes não intervimos nem denunciamos, mas ao fazer isso estamos a cometer outro crime de mau trato”.
A maioria das situações que os Meninos de Oiro acompanham são sinalizadas por outras instituições suas parceiras, como a Segurança Social, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Setúbal, o Agrupamento Escolar de Azeitão, o Centro de Saúde e particulares que já estão sensibilizados para a questão. Ainda assim, “muitas das vezes são as próprias famílias que nos vêm pedir ajuda, como a mãe que vem denunciar que o pai bate no filho; ou a mulher que é maltratada, tem um bebé e precisa de ajuda para fugir; são muitas as maneiras das situações nos chegarem às mãos”.
Conforme explicou ao Nova Morada, Maria do Céu tem casos de adolescentes com 18 anos e até de bebés que são apoiados antes de nascer, ainda estão nas barrigas das mães. Este projecto é o “Gugú Dadá” e tenta acompanhar a criança no ventre, para que nasça num ambiente feliz.
Este CAPAF funcionou de 2004 a 2008 com base em trabalho voluntário de técnicos de diversas áreas. Desde então, ao grupo juntou-se uma técnica de serviço social, uma educadora social, uma psicóloga clínica, uma animadora sóciocultural, uma agente familiar (sendo que as restantes são pagas pela Segurança Social) e uma auxiliar de serviços gerais e uma administrativa.
Uma das funções dos voluntários é fazer a triagem dos bens oferecidos por particulares à loja social que os Meninos de Oiro detêm.
Na loja, localizada na delegação da Junta de Freguesia de São Simão, “vendemos todos os bens que estão em bom estado pelo preço simbólico de um euro”, o espaço está aberto à comunidade, mas curiosamente “a maior parte dos artigos são comprados por sócios da Associação”.
Apesar das dificuldades que a Associação atravessa, “todos os dias temos duas ou três pessoas a entregar-nos roupa, brinquedos e calçado”.
“Estamos numa situação financeira crítica, dívidas, cheques ao banco, um carro que temos de pagar a crédito, imensos encargos e menos apoios do que nunca”
Nos actuais tempos de hostilidade económica, “há mais desemprego e apercebemo-nos que há cada vez mais famílias a precisar de apoio alimentar”.
Mas não são apenas as famílias a sofrer com a crise, também os Meninos de Oiro vivem momentos difíceis, “nos primeiros anos tínhamos muitos apoios de empresas e particulares, mas de há dois anos para trás que praticamente não tivemos nenhum apoio monetário”. A excepção surgiu no dia desta entrevista, em que uma funcionária da Luso-Atlântica apoiou a instituição com um donativo, “foi mesmo o Pai Natal que nos veio visitar”, declarou a presidente, que afirmou que “estamos numa situação financeira crítica, dívidas, cheques ao banco, um carro que temos de pagar a crédito, imensos encargos e menos apoios do que nunca”...
As dificuldades que a instituição atravessa podem mesmo colocar em risco o sonho de construir um Centro de Acolhimento Temporário para crianças em risco dos 0 aos 6 anos, mas que vai acompanhar jovens até aos 18 anos.
“Já temos um terreno com mais de 8 mil metros quadrados e é ali que vamos construir as nossas instalações de raiz, junto à escola nova da Brejoeira”. Neste espaço, os Meninos de Oiro vão ter um centro de acolhimento, um lar para crianças e jovens, apartamentos de autonomização, ludoteca, entre outras valências. Para que o almejo se torne real, “precisamos de apoio para crescer e é difícil crescer numa altura como esta”, lamentou Maria do céu Guitart.
Para além dos artigos entregues diariamente na loja, o que os Meninos de Oiro mais necessitam para avançar é de apoio financeiro e de novos sócios. De salientar que a Associação tem um projecto nomeado “Empresa Solidária”, em que as empresas que se unem à causa se tornam empresas solidárias e ganham um selo de qualidade.
Para já, os Meninos de Oiro continuam sedeados na zona nobre de Azeitão, é ali que se faz “o trabalho mais maçador: registar todos os actos que se vão praticando e que vão de conversas a consultas”, um processo demorado mas necessário que deve estar sempre actualizado. Também é neste espaço que se realizam as reuniões com as famílias e actividades com as crianças, bem como outros projectos, como a educação para os afectos ou para a cidadania, com adolescentes.
De destacar que existe ainda uma iniciativa cotada na Bolsa dos Valores Sociais que vai fazer um ano, conta com o apoio da Gulbenkian e espera que os investidores invistam não com bens materiais mas com boas acções nas instituições de solidariedade.
“Temos um exemplo que é o ‘Por Ti’ que é uma espécie de apadrinhamento: cada criança escolhe, dentro da Associação, a madrinha com quem sente maior afinidade. É essa madrinha que a acompanha à escola, faz a ponte entre os pais, esclarece as suas dúvidas, a apoia e brinca com ela”.
Para além do apoio dado à criança, existe a necessidade de ensinar algumas famílias a brincar, a gerir a economia doméstica, a fazer uma sopa, levar ao Centro de Emprego, a uma consulta ou mesmo ao hospital. Na entrada dos Meninos de Oiro, a instituição tem um placard com diversos anúncios de emprego, uma mais-valia no sentido de apoiar os pais que se encontrem sem trabalho.
Apesar das dificuldades que atravessam, é ao resgatar o sorriso das crianças que a equipa tem novo alento para continuar.
“Vamos apoiar estas crianças até terem asas para voar, queremos transmitir o nosso voto de confiança e queremos continuar a ajudar as nossas crianças a ter tudo aquilo que elas merecem”.
Nova Morada, edição 398, Dezembro 2010