24.8.09

DOS CHEIRINHO DA FOSSA AOS NOVA GALÉ

Apesar de se ter dedicado ao grupo tradicional “Nova Galé”, o pai do samba em Sesimbra gere ainda o “Quilombo de Santiago”, um espaço alternativo que se dedica à divulgação de música brasileira “que não se ouve em mais lado nenhum”


Foi numa manhã solarenga, na esplanada de um café onde os típicos “Galés” nasceram, que o Nova Morada entrevistou o pai do samba em Sesimbra, Reinaldo Nunes. Responsável por um movimento que em tempos de Carnaval arrasta multidões dos quatro cantos do País à humilde e piscosa Vila, Reinaldo deu-se a conhecer em tempos de revolução com “Os Cheirinhos da Fossa”, levou os “Trepa no Coqueiro” à ribalta e integra agora os “Nova Galé”.

Histórias de devoção à arte, à música, ao que de mais tradicional pode existir nas terras, mas com um certo toque de humor, afinal “o samba não é uma coisa muito séria, pretende às vezes falar de coisas sérias mas brincando, o Carnaval é para brincar”!


Nova Morada - Que circunstâncias contribuíram para sair de Queluz e vir morar para Sesimbra?

Reinaldo Nunes – Penso que é uma paixão familiar antiga da minha mãe, uma coisa já tradicional da minha mãe e por volta de ’75 decidi sair ficar por aqui, onde tenho praia e tenho tudo…


NM – Foi nessa altura em que integressou nas primeiras escolas de samba de Sesimbra…

RN– Não, eu provoquei as escolas de samba! Era uma ideia que eu tinha para fazer o Carnaval em Sesimbra, não um Carnaval de rua concretamente, porque na altura não havia esse costume, mas nas sociedades recreativas. No final do Carnaval de ’75, ainda tenho desenhos do tempo, pensei fazer uma escola de samba para o ano seguinte, um grupo restrito... só que a coisa cresceu e em ‘76 criámos a primeira escola de samba, com o nome “Os Cheirinhos da Fossa”, porque havia uma fossa que drenava os seus dejectos para a Baía, que era algo muito interessante na altura (risos). A coisa foi crescendo e durante três anos acompanhei essa rapaziada, éramos poucos na realidade, mas gente com o sonho de se divertir mas que queria fazer alguma coisa pelo samba.


NM – Refere-se a um prospecto do samba brasileiro ou algo mais “aportuguesado”?

RN – Não, era definitivamente uma coisa de cariz muito, muito carioca, sem dúvida! Aliás, porque a minha raiz é essa, as minhas influências de pai eram todas essas, a musicalidade era essa… muito mais, no início, com o cariz da batucada do que propriamente com o samba escrito ou cantado. Mais tarde é que veio tomar essas formas.


NM – Quantos elementos tinha o grupo nessa altura?

RN – Aquilo surgiu da fusão de dois grupos e que me lembre, as pessoas que me acompanhavam directamente eram muito poucas, digamos que os mentores das ideias das escolas de samba eram muito poucos. Havia um grupo formado já aqui em Sesimbra para Carnavais mas sem essa índole que gostou dessa ideia e então a rapaziada juntou-se. Eu não tenho a certeza, mas suponho que na altura fôssemos uns 46, todos juntos. Aliás, na altura prova de que pertencíamos a grupos distintos era o facto das fantasias serem diferentes, umas fantasias eram feitas de uma maneira, outros de outra…


NM – Mais homens ou mulheres?

RN – Igual, igual!


NM - Nessa época as senhoras já vestiam fantasias atrevidas?

R – Não, isso é algo mais recente…


NM – Qual é a grande diferença entre os grupos de samba da altura dos actuais?

RN – Eu acho que a batucada nessa altura era mais bonita, em termos de fantasia foi um processo evolutivo, digamos que em termos de fantasia estávamos na idade da pedra, em termos dos modelos, quer a grande parte dos níveis que hoje vimos. Muitas chitas, camisas às riscas, chapéu de palha... como pode imaginar estávamos em ’76 e era natural que fosse assim.

NM – Depois de “Os Cheirinhos da Fossa”, como é que evoluiram as escolas de samba em sesimbra?

RN – Eu suponho que foram passados 3 anos que começaram a aparecer outros grupos que tiveram a ideia de fazer escolas de samba. Penso que as pessoas adoraram a ideia e eu gostava de sublinhar isto, teoricamente o nosso grupo não era para vir para a rua, mas tinha-se dado o 25 de Abril, numa época em que as pessoas já se podiam movimentar de outra forma em termos sociais e humanos. O que acontece é que nos pediram para vir para a rua na terça-feira de Carnaval e isso contagiou muita gente e muito boas vontades. Aquele grupo que aglutinou muita gente, com muitas vontades foi um grupo com uma vontade restritiva... Havia muitas Sesimbras dentro de uma coisa tão pequenina e foi expulsando naturalmente outros núcleos que foram fundando outras escolas de samba e passados três anos havia mais duas. Depois começaram a surgir novas escolas, núcleos de amigos, círculos de pessoas que se juntavam e queriam participar no desfile, agora que havia diversidade.


NM – O Reinaldo contribuiu para fundar alguma das novas escolas?

RN – Logicamente os outros amigos, a partir do momento em que eu saí desse grupo e ele terminou, queriam fazer escolas de samba e pediam a minha ajuda algumas vezes de forma escondida, para os outros não saberem que eu estava a ajudar e outras declaradamente. Só uns anos mais tarde eu voltei a ingressar numa escola de samba para o levar ao patamar com algum gabarito nacional, por volta do ano 83/84, que foi o “Trepa no Coqueiro”. De facto conseguimos levá-los, a escola de samba teve uma projecção nacional muito grande, actuámos nas melhores casas do País, no Pavilhão dos Desportos, no Coliseu dos Recreios, nos grandes hotéis da cidade... aí veio a grande promoção e então por aí fora...


“É extraordinário perceber que vem gente de todo o lugar para ver uma terra a fazer a sua representação, o seu enredo, a sua encenação carnavalesca...”


NM – Acredita que isso contribuiu para fazer do Carnaval de Sesimbra um dos mais concorridos do País?

RN – Não tenho dúvidas, disso não tenho dúvidas! Eu suponho que os meus parceiros do início nunca sonhassem, eu próprio também não, mas conhecia o processo brasileiro e era diferente. Na realidade aqui há um ex-líbris fundamental, quando a população gostou do modelo da escola de samba, toda se entregou para o seu desenvolvimento. Hoje, se houverem mil desfilantes, neles estão representadas todas as casas sesimbrenses. Se há um aglomerado de quatro por casa, se lá estiver um representante, já lá estão todos. É sem dúvida um ex-líbris da Vila, o nosso Carnaval é feito pelas pessoas da terra, pode-se contestar ou não o facto de ser um modelo importado, mas o que é que não é? O que é que os portugueses não deram ao Mundo? Neste caso os portugueses também deram ao Mundo o samba e tem de haver retorno, ser feito pelos sesimbrenses é extraordinário, como é extraordinário perceber que vem gente de todo o lugar para ver uma terra a fazer a sua representação, o seu enredo, a sua encenação carnavalesca...


NM – Como é que uma Vila tão pequena consegue arrastar multidões para uma festa de Carnaval?

RN – O Carnaval de sesimbra tem tantas vertentes... desde a fantasia individual, ao grupo que aqui vem à noite, ao desfile nos seus diferentes aspectos: o desfile das escolas que é o supra-sumo, ao desfile dos palhaços ou das meninas dos “Tripa Mijona”, o sesimbrense tem tanta coisa, tanta coisa, que acaba por mostrar tudo às pessoas e se calhar até tem outras coisas escondidas que um dia há-de mostrar mais. Mas na realidade o que as pessoas gostam de ver aqui é o desfile das escolas de samba!


NM – Tem alguns aspectos negativos a apontar?

RN – Há sempre, quando queremos o bem às coisas temos sempre aspectos que queremos melhorar... Um deles é o traçado do percurso, nós temos uma marginal maravilhosa, com uma possibilidade de concentração das escolas não interferindo com as infra-estruturas da terra, estacionamentos, acessos... penso que na realidade o desfile devia ficar na marginal, no sentido de nascente/ poente que em termos técnicos e humanos é o mais indicado. Se houver um temporal, melhor! É mais giro (risos). Mas eles sabem fazer tudo o resto, sabem fazer as fantasias, compôr e é Carnaval... como diz o enredo, o samba não é uma coisa muito séria, pretende às vezes falar de coisas sérias mas brincando, o Carnaval é para brincar! Mas de uma vez por todas devia-se deixar de polémicas e fazer o Carnaval na marginal.


NM – Actualmente é um dos elementos de um grupo típico sesimbrense, os “Nova Galé”. Como é que se envolveu nesta aventura?

RN – Já viu onde nós estamos? Isto é a Galé! Foi exactamente neste café que os “Galés” nasceram, pela mão do Mário Regalado. A minha mãe alugava uma casa nesta rua e quando eu era garoto, convivia exactamente com a música deles. Passávamos aqui férias, comíamos aqui todos os dias e isso acompanhou-me desde criança. Quando isso desapareceu, ficou assim um grande buraco...


NM – Quem eram os “Galé” e quem são os “Nova”?

RN – Eles eram quatro, essencialmente. Era o Mário Regalado, o António do Porto, o Amândio Bigodes – que veio a ser meu padrinho de casamento, que foi uma coisa que lhe prometi desde criança – e o Hermínio Pinhal, se bem que haviam outras pessoas que acompanhavam o grupo. E aqui nasceu a música que nasceu em Sesimbra, com uma componente setubalense.

Eu convivi com as coisas na altura e há uns dez, doze anos, achei que não podiam morrer e voltei a criar o reportório existente no tempo, muitas coisas gravadas não só em disco mas pelas pessoas com os antigos gravadores. Fui apanhar as coisas, voltei a juntar novas composições, mais actuais, poetas da actualidade, e compus músicas para isso, foi um processo que não parou e que espero que quando a gente desaparecer haja alguém que continue.Hoje somos sete, três elementos de cordas e o resto de percussão, voz principal, segunda voz e coro e penso que não representamos a Vila, ninguém nos dá trabalho mas é giro (risos).


“A malta junta-se ali, (no Quilombo de santiago) faz uma patuscada e ouve música da boa, daquela que não se ouve em mais lado nenhum!”


NM- É por amor à camisola?

RN - Sem dúvida, sem dúvida! Mas gostaria de realçar que quem lê as coisas pode pensar que abandonei o samba e me dediquei ao projecto “Nova Galé”, mas não! Há sete, oito anos atrás, fiz um espaço alternativo onde a divulgação da música brasileira é muito forte aqui em Sesimbra. É um espaço onde eu levo os meus amigos, grandes músicos que vêm do Rio de Janeiro ou que estão em Portugal para fazer apresentações regulares no “Quilombo de Santiago”, que é o nome da última escola de samba que fundei, na Venda Nova, e onde se realiza uma tertúlia musical de 15 em 15 dias, sem atropelar outras datas. Ou seja, a coisa não parou por aí! Continua às vezes muito mais no âmbito da música de raiz brasileira do que no âmbito da música de raiz sesimbrense. Aproveito para vos convidar para aparecerem! O “Quilombo” não é um espaço comercial, mas alternativo e privado, que tem feito coisas maravilhosas...


NM – Que género de maravilhas?

RN – No Verão do ano passado, por exemplo, tivémos aqui o grupo “Água de Curimba”, que é um dos grandes grupos de choro do Rio de Janeiro, grandes instrumentistas, eram uns sete a oito com o cantor Mário Sacramento. Temos tido aqui a Do Miranda, rei do bandolim e que reside aqui em Portugal, Tércio Borges, Marcelo Fortuna, imensos músicos que vêm cá... a malta junta-se ali, faz uma patuscada e ouve música da boa, daquela que não se ouve em mais lado nenhum!


Nova Morada, edição nº 363, Fevereiro de 2009