"OS CEGOS PRECISAM DE SABER QUE TÊM DIREITO A APOIOS"
Apesar de “não sabermos onde eles estão”, dos mais de 163 mil invisuais registados em Portugal, cerca de um milhar habita no Concelho do Seixal declarou Manuel Saraiva, cego e presidente da União de Cegos e Amblíopes do Seixal (UCAS).
Manuel Saraiva – O UCAS foi registado em Julho de 2009 e surgiu da necessidade de apoiar os cerca de mil cegos no concelho do Seixal, tendo como fim vir a abranger todo o distrito de Setúbal. Não sabemos onde eles estão, por vezes a própria acção social não sabe, mas queremos chegar às pessoas que perderam a visão, fazer esse levantamento para as ajudar!
JS – Qual é a principal mensagem que falta passar aos invisuais?
MS – Acima de tudo informar que os cegos podem ser ajudados e que têm apoios gratuitos a nível de ‘software’ para telemóveis, computadores, braille, para aprenderem...
Hoje em dia existem umas pequenas máquinas que parecem uns isqueiros e que dizem as cores das roupas, por isso os cegos podem escolher as próprias cores do vestuário a utilizar!
Os cegos precisam de ser informados, encaminhados... neste País tudo é burocrático e é por isso que nos queremos propôr a ajudar!
JS – Recentemente o UCAS abriu um balcão de atendimento no Miratejo. O espaço tem estado a funcionar?
MS – Sim, o presidente da Junta de Freguesia de Corroios tem-nos apoiado bastante e esse espaço foi uma mais-valia, mas de momento a sede social funciona aqui na minha residência, porque em Dezembro fui atropelado e fiquei um bocado limitado. O UCAS funciona por voluntariado e por carolas e assim que recuperar conto pôr a associação tal qual a desenhei e tal qual as pessoas precisam, quero ir para o Miratejo e então receber e auxiliar as pessoas.
JS – Sabemos que é frequentemente abordado por cegos de todo o distrito...
MS – Sim, recebo telefonemas de pessoas de Setúbal, do Seixal, do Barreiro... não sei como é que sabem o meu número, mas tenho um telefone que é quase público (risos). As pessoas querem saber se os subsídios existem, o que têm de fazer e eu ajudo-as e disponibilizo-me para ajudar.
JS – É complicado gerir o UCAS e a sua vida pessoal em simultâneo?
MS – Por vezes sim, porque também sou casado, tenho a minha mulher, o meu filho João Pedro que já vive em casa própria e a Inês que é mais nova e que vive aqui connosco. Tenho a minha vida e de momento só não trabalho porque estou de baixa...
JS – Para quem não sabe, o próprio Manuel Saraiva também é amblíope...
MS – Sim, sou amblíope... A minha mulher é amblíope e vê dois e meio por cento. Ela também é albina e por incrível que pareça, dizem que os amblíopes vêm melhor de noite do que de dia, mas isso é mentira, porque ela à noite vê muito pior! O que acontece é que os albinos vêm com dificuldade com o sol intenso do Verão...
Um amblíope vê um a dois por cento e eu de momento tenho uma visão de cerca de meio por cento, por isso, em termos técnicos, sou considerado cego.
JS – O que é que é ver meio por cento?
MS – Meio por cento é ser tecnicamente cego, mas felizmente ando sozinho, saio, faço atletismo, não ando com a bengala na rua e consigo fazer a minha vida pessoal e profissional à vontade... é claro que há pessoas que estão muito melhores do que eu, tal como existem outras que precisam da minha ajuda!
JS – É complicado para um casal com tão pouca visão educar duas crianças?
MS – É complicado mas é possível! Há truques e por vezes o que se torna complicado é fazer com que os filhos entendam a cegueira dos pais. Quando era miúdo, o meu filho não aceitava muito bem o facto da mãe ser albina... a minha filha aceitou melhor, mas ele foi o primeiro! Nunca escondemos a nossa deficiência a niguém, aliás, quem o faz é palerma porque não dá para esconder...
De qualquer forma, antes de nos casarmos fizémos exames, não queríamos mais cegos para o Mundo porque é complicado! Mas soubémos que eles não iam ser cegos, podiam ser se eu fosse o albino e não a minha mulher, mas ao contrário não havia qualquer problema e agora tenho ali um grande rapaz e uma grande rapariga!
JS – Muitas pessoas perdem a visão em adultas e ficam bastante revoltadas. O que é que podemos fazer para as apoiar?
MS – É perfeitamente normal que uma pessoa que vê bem, tem um acidente e cega, fique revoltado porque o Mundo parou ali! Temos de o entender – e esse papel cabe essencialmente à família – e ajudá-los, provar que o Mundo não acabou, ajudá-lo na reabilitação. Actualmente os computadores falam e esse é o nosso Mundo! Não é a vida quotidiana que se tem de adaptar a nós, nós sim, temos de ter a capacidade de nos adaptar!
“Não é a vida quotidiana que se tem de adaptar a nós, nós sim, temos de ter a capacidade de nos adaptar!”
JS – O convívio com outros cegos é importante na reabilitação?
MS – Sim, é muito importante! Podemos aprender uns com os outros e a inteligência é comum a cegos e a não cegos. Nós também vemos, mas de outra maneira, ouvimos, sentimos e imaginamos! Muitos familiares esquecem que é essencial levar o cego para o convívio. Quando as pessoas ficam deficientes não se tornam em nenhuns bichos, precisam de aprender e de ser apoiadas, não podem ser protegidas nem escondidas!
JS – Quais são as principais iniciativas promovidas pelo UCAS?
MS – Como disse há pouco estamos um pouco parados por causa do meu acidente. A festa de carnaval não se realizou, mas temos um seminário agendado e todos os anos promovemos férias na Quinta do Crestelo. Também temos excursões que fazemos em autocarros que nos são cedidos pela Câmara Municipal do Seixal (CMS) e que têm de ser muito bem organizadas, porque se um grupo de pessoas normais visuais vê um museu em quinze minutos, um grupo de cegos demora duas horas no mínimo, porque vêm perguntando as coisas.
O ano passado também realizámos o II Torneio de Goalball, um desporto para invisuais e amblíopes que surgiu após a II Guerra Mundial para ocupar os combatentes que cegaram e que esteve integrado na Seixalíada.
Já agora, para além da referência à Junta de Corroios e à CMS, sem esquecer o vereador Joaquim Santos e a técnica Raquel Falqueiro, tenho ainda que destacar a apoio que temos tido da Fertagus, que nos permite viajar gratuitamente entre Lisboa e Seixal nos dias em que se realizam os nossos eventos.
JS – Essas iniciativas destinam-se a que idades?
MS – A todas! Temos crianças e adultos mas as idades não importam, é essencial conviver e partilhar truques, porque os cegos vivem de truques! Em casa têm de ter tudo arrumado no mesmo sítio para não perder as coisas, aqui em casa a pessoa cega é que mexe nas coisas, para arrumar tudo no mesmo sítio! Na rua é uma selvajaria própria de pessoas com uma mentalidade pobre, os cegos têm de aprender a desviar-se dos obstáculos, a ter referências, saber o nome de casas comerciais, contar os degraus dos passeios, o sol também nos indica se há uma abertura e que ali pode haver uma rua... estas são formas de nos defendermos dos outros!
JS – Como é que os invisuais podem chegar até si?
MS – Os interessados podem contactar-me através do recente e-mail da associação, ucasrumoaofuturo@gmail.com, para o meu endereço pessoal que é manuelvsaraiva@hotmail.com ou ligar para o telefone número 966 05 87 93.
Jornal do Seixal, edição 85, Abril 2010